Blecaute_uma revista de literatura e artes_ano 2_n7
B BLECAUTE
uma revista de literatura e artes Campina Grande-PB, Ano 2, n. 7 , p. 51
“– QUEM PUSERA O DISCO PARA TOCAR?”
NINGUÉM REPAROU: mas no dia em que abandonaram definitivamente a casa, a radiola
vermelha tocava o último sucesso de Roberto Carlos.” Durante o trajeto até à pista de
asfalto, ela seguia, pensando se alguém se lembraria de desligar a radiola e guardar o disco.
Algumas vezes, ao longo da vida, cismava que o disco de Roberto continuava tocando
infinitamente sobre os escombros da casa, aguardando um desfecho qualquer. Consultara,
alguns anos mais tarde, a irmã e a mãe, mas elas lhes respondiam sempre da mesma
forma: “numa situação daquelas, lembrar o quê?”
Como era estranho que esse detalhe lhe doesse tanto, elastecido dentro dela, numa
visão que lhe perseguia, presa, no fundo da carne de suas retinas: a radiola vermelha,
perdida para sempre, na casa vazia, tocando, imorredoura, o maior sucesso de 68, do Rei.
Nunca mais ouvira falar do pai, no tempo infinito que lhe restou, depois daquele dia.
A imagem da cassa onde vivia com os pais, os avós e as tias paternas, se estenderia,
martirizante, sobre os cajus esmaltados de suas lembranças.
Enquanto seguiam, ao longo da estrada, enrolados na luz da manhã, ela voltava os
olhos, espargindo sobre a casa, sobre as lágrimas da avó, a casa de farinha, a máquina de
puxar agave, sobre o açude e o balanço solitário no pé-de-manga, toda a sua inominada
angústia infantil. Tudo tudo ia ficando para trás, na nuvem de poeira que se ia formando,
Uma curiosidade e um sentimento que ela teria chamado de horror se, à época,
soubesse dos ardis dos nomes, doíam-lhe no peito, mas ela seguiu a pequena caravana sem
fazer nenhuma das perguntas que se iam avolumando na sua cabeça de menina. A mãe
tremia, com o irmão caçula nos braços e ela, Naíla, não compreendia o seu silêncio e o seu
pânico. Alguma coisa nela já odiava, irremediavelmente, a mãe.
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Rememorava como, naquele dia, todos os trabalhadores, avós, tios e tias se puseram
a ajudar a mãe, encaixotando louças, engomando e dobrando roupas, preparando comidas,
carregando os dois velhos burros com pacotes e mais pacotes. Depois, foram todos levá-los
até a pista, onde tomaram o mesmo ônibus que os levava, todos os anos, para o parque, no
dia da Conceição ou para o doutor, quando algum deles adoecia.
Quando entraram naquele ônibus velho, ela rasgou num choro de angústia e ira. A
mãe, então, largou o filho caçula nos braços da tia, trouxe-a para perto de si, abraçando-a.
Do lado de fora, o campo com suas limpas manhãs marchavam ao contrário. A mãe a
abraçava: um abraço que lhe pesou como pesavam as sacas de farinha e feijão esmagando
as cabeças tortas dos homens do sítio. Ela odiou e, para sempre, aquele abraço.
Na manhã seguinte, Naíla foi acordando aos poucos num quarto pequeno e escuro.
Bruscamente, arrumaram-na, alimentaram-na e, daí a pouco, estava, de novo, dentro de
outro ônibus que, depois de andar quase um dia inteiro, chegou numa nova cidade. Ali,
dormiram mal acomodados em colchonetes, na casa de uma velha conhecida da mãe. Na
manhã seguinte, Naíla foi novamente se acordando aos poucos, então, uma mulher quase
velha, penteou-a, vestiu-a, deu-lhe café e pão. Depois, seguiram todos: ela, a mãe e os
irmãos para uma rodoviária mal cheirosa e cheia de gente e de ônibus coloridos. Sua mãe
comprou pipoca, bombons e refrigerantes. Daí a pouco, viu-se, pequenina, dentro de um
ônibus amarelo e grande onde passaram muitos dias , como se fossem, para sempre, viver
Desorientada, sentindo um enorme medo de tudo, ela pensava caladinha: “Que devo
dizer?” Ela dormia muito e, durante a viagem, bom, a mãe dava-lhe muitas bolachas com
refrigerante. Mas, raiava o dia, desabava a noite e a mãe não dizia nada. Via-se diante de
uma estranha criatura que a abraçava de um abraço que lhe feria os ossos, um abraço sem
Queria voltar para casa, queria a avó, o avô, o balanço, mas algo dizia ao seu coração de
menina que rumavam para o nunca mais. O medo espremia seu peito como a prensa da
casa de farinha espremia a massa crua da mandioca e ela fora aprendendo a chorar
escondido, sem fazer barulho, as lágrimas descendo a escadaria dos olhos, lágrimas secretas
Apertava os dedos, os lábios, semicerrava os olhos, beliscava os braços, cruzava e
descruzava as pernas, buscando, em vão, alguma ordem para aquele sua confusão.
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Mirara a mãe, durante tantas vezes na vida, indagando-se: “Como é possível que eu,
às vezes, sinta gostar de você e outras não?”
Porque carecia de despistar a solidão, assim que aprendera a escrever, manteve
correspondências imaginárias com seus ausentes: o pai, os avós, a prima mais querida.
Nessas cartas nunca enviadas, ela lhes perguntava sempre se ainda funcionava o velho
forno da casa de farinha: aquele forno imenso, crepitante, sedutor qual uma caldeira
Passara a vida inteira tentando isolar os fatos para poder vê-los e interpretá-los
Logo que chegaram ali, ao Rio de Janeiro, sua mãe passara a trabalhar como
enfermeira. Suas horas de serviço eram longas e irregulares. Ela preferia assim: somente
na solidão, seus rancores e seus desgostos pueris ameaçavam uma definição. Passou a usar
a imaginação como um modo eficaz de vingar-se ou, então, usava-a para preencher as
arestas da vida, principalmente, quando esta lhe impunha uma mudança abrupta, em
Era como se estivessem mortos: ninguém nunca fora visitá-los, nem por carta nem
por retrato. No início, a mãe escrevia, entre lágrimas, umas cartas longas, que enviava de
cidades vizinhas, com endereços fantasmas. Algumas vezes, ela mesma acompanhara a mãe
até essas cidades distantes, somente para pôr a carta no Correio. Depois de alguns anos,
foram rareando. A última carta enviada foi posta de uma cidadezinha do Espírito Santo,
onde passaram três dias, na casa de uma enfermeira, amiga da mãe.
Perdida para sempre, tornara-se arredia, descontrolada e fantasiosa. A mãe, a
princípio, preocupada, reagiu com excesso de carinho. Depois, com inelutável tristeza,
seguida de uma mal disfarçada hostilidade. E, por fim, com uma tranqüila indiferença,
Aproveitava as tardes, sozinha em casa, para voltar a passear pelos mesmos lugares
de outrora, puxada pelos braços da avó, revivendo tragicamente as mais ricas sensações por
que tinha passado: os longos banhos na cacimba, os pés de jabuticaba, o grupo escolar, as
academias, as histórias de trancoso, as bonecas de pano, as misteriosas conversas com os
jasmins. Do pai bêbado, ficaram as longas noites às claras, os discos de Roberto Carlos e o
forno da casa de farinha ardendo as farinhadas desde a manhã até a outra madrugada.
Quem sabe, seu pai ainda não estaria ali, alimentando a caldeira eterna?
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Podia-se ver ainda, menininha anêmica e agreste, quando lhe subtraíram a casa, a
avó, a radiola vermelha, os pés de caju, o bêbado pai. Não que sentisse falta dele. Ele
também lhe era um estranho que, sob influência do álcool, fazia xixi na cama, queria
assassinar a esposa, quebrava os móveis, caía pelas estradas, dormia preso, tinha coma
alcoólico, passava breves temporadas nos sanatórios. Seu pai, fora sim, a desilusão que
deformara, para sempre, a sua personalidade de criança.
Ia assim, lentamente, ficando possessa consigo mesma, por não poder controlar seus
pensamentos, sentimentos e um nervosismo persistente que lhe acompanhou vida afora.
Somente quando era acometida por alguma doença, sentia algum sossego. Quando criança,
sofria de asma, eczemas, coceiras, suores noturnos, dores na garganta, tosse.
A mesma sensação que lhe fustigava quando recordava as brasas ardentes do forno
da casa de farinha acudia-lhe algumas vezes na vida. De maneira mais intensa quando o
irmão apresentara, à família, a sua futura esposa. Sofrera, junto com a mãe e os irmãos, o
sofrimento de Augusto durante cada dia e cada noite em que durara seu casamento de cinco
anos, entre brigas, escândalos, feridas, ciúmes até que Clara Dias enviara-lhe, numa
quarta-feira, à tarde, uma carta de nunca mais. Augusto viera morar com a mãe e o irmão
caçula. A Naíla, restou Augustinho, com seus olhos pretos, o seu riso magro, que ela cria,
como criaria a si mesma, menininha feita de jasmim, sangue e brasas ardentes.
Também teve filhos: essa aflição amadurecida pelo ventre. Quanto a eles, ter-lhes
dado à luz, não a livrara do imenso terror da vida. Morria de medo de banhá-los, quando
bebês, as frágeis cabecinhas parecendo que iam desprender-se. Às vezes, não sabia o que
fazer com eles, sentia medo de espetá-los com o alfinete quando ia trocar-lhes as fraldas.
Não raro, sentia-se como se tivesse traído a si mesma, ao dar à luz. Amava os filhos com um
Tudo era mais profundo que uma simples idéia: o pai bêbado e as brasas ardentes, a
mãe em pânico, uma menina brincando com bonecas e flores, tudo estava alojado em suas
vísceras, nos eczemas da pele, nas glândulas irrequietas, na tensão dos músculos, nos ossos
que doíam. Vivia dilacerada em duas: a menininha agreste, pálida e arredia, e a professora
de Química, mãe de quatro filhos, enérgica e firme. A ponte entre as duas era sempre a
mesma: o fogo, todas as flores, qualquer bêbado, qualquer dor, qualquer canção de Roberto.
Ia envelhecendo, mas a menininha brincava diante dela, com as bochechas descoradas, os
olhos da cor do barro da estrada, as pupilas dilatadas diante das brasas da casa de farinha.
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Agora, uma grande emoção rasgava-lhe os movimentos: poucos minutos apenas a
separavam das paredes dramáticas da casa ansiada. Sua mãe já estava sepultada no
pequeno cemitério de sua cidade natal. Sentia-se como se, somente agora, a vida se lhe
abriria por outra senda mais auspiciosa.
Durante esses mais de trinta anos, punha-se a imaginar como tudo havia de estar
irremediavelmente transformado. No entanto, o estranho germe da inércia tinha se fixado
naquele ponto do mundo. Suas velhas tias disseram-lhe que a casa de farinha continuava
funcionando, embora tivessem transformado a parte de trás, em cocheiras para as poucas
Depois do enterro da mãe, enquanto os irmãos se acomodavam nas casas de antigos
desconhecidos parentes, Naíla instalara-se no pequeno hotel da cidade de onde partiria na
manhã do dia seguinte, num velho táxi, para o sítio Mulungu.
Na manhã seguinte, quando Naíla acordou, aconteceu de sentir as mãos
excessivamente suadas. Seu estômago, intestino e bexiga estavam contraídos, a boca,
repentinamente ressecada. As têmporas latejavam. Porém, temerosa, mas decidida,
empurrou para trás, o nervosismo, saiu da cama, resolvida a revisitar o santuário da
menina. Tomou, então, um longo banho. O banho sempre lhe proporcionava uma sensação
de ajustamento e paz. A torrente de água morna ia, aos poucos, massageando seu corpo e
acalmando sua agitação interna. Logo, seu estômago foi repousando, sua respiração
recuperando o ritmo normal, seu coração se aquietando. Quando o chuveiro a acalmou de
todo e, à medida que secava o corpo com a toalha gasta, revia a casa da infância: lenda que
persistia, imutável, nos mosaicos do tempo. Revia a rodagem enladeirada, a avó ainda
jovem, não a que reencontrara ontem, no cemitério: alquebrada e triste, aos 85 anos. O avô,
esse morrera logo depois que deixaram o sítio. As tias envelheceram impiedosamente,
Mas não eram esses retalhos humanos que ela estava indo encontrar. Queria rever o
forno subterrâneo, como um túnel ardente, onde os trabalhadores, feios, magros, sujos e
suados empurravam mais lenha para alimentar a fornalha e onde a mãe, àquela tarde, o
forno ainda ardendo as brasas da farinhada da manhã, empurrara o pai, ruim e bêbado, sob
os olhos de ágata da menininha que, escondida entre os jasmineiros (haveria ainda os
jasmineiros?) conversava, displicentemente, com as flores.
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Enquanto se afastava, com medo de ser descoberta, pensou mesmo que o pai iria
brigar feio com a mãe, quando saísse dali.Talvez tenha ouvido uns gritos abafados, que
foram ficando cada vez mais enfraquecidos.
Mas o pai não aparecera para jantar, nem para dormir, nem para o café da manhã,
nem nos dois dias seguintes. Ouvia uns rumores, uns falatórios, uns choros, uns
movimentos estranhos pelos corredores da casa.
Aí, três dias depois, enquanto a radiola tocava o último sucesso de Roberto Carlos,
ela, a mãe e os irmãos abandonaram definitivamente aquela casa e seus sítios fanados.
Vez em quando, a menininha volta e indaga:
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JANAINA AZEVEDO (Paraíba) – Escritora e Professora de Literatura. Autora dos livros Maria (1999) e Canção para dois amores (2005),
Morton Chiropractic & Manual Therapies 2012, 20:38http://www.chiromt.com/content/20/1/38Internal carotid artery dissection followingchiropractic treatment in a pregnant woman withSystemic Lupus ErythematosusA case of internal carotid artery dissection in a pregnant woman with Systemic Lupus Erythematosus (SLE)immediately following chiropractic treatment is presented. The literature regarding
Chungará (Arica) v.33 n.2 Arica jul. 2001 Páginas 289-292 OVERVIEW OF HAIR ANALYSIS: A REPORT OF HAIR ANALYSIS FROM DAKHLEH OASIS, EGYPT *Valley View Regional Hospital, 430 N Monta Vista, OK 74820, U.S.A. E-mail: **930 East 17th Street, Ada, OK 74820, USA. E-mail: During growth and keratinization certain chemicals, including drugs, are "trapped" in hair. These chemicals can s